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terça-feira, 3 de dezembro de 2019

REMINISCÊNCIAS


Cada um dos irmãos atendia por um pseudônimo.
O meu era Nenca, que me foi dado pra minha irmã caçula.
Faltavam ainda nascer dois dos sete filhos que completariam a alegria daquela casinha de taipa. Casinha de apenas três cômodos: uma sala, um quarto e a cozinha.

Quase no meio da sala uma forquilha sem qualquer utilidade aparente.

A cama era o único móvel. Fogão à lenha, paredes baixas, duas portas e nenhuma janela.

No oitão vários cortiços e o exemplo de trabalho das abelhas.
Não havia preocupação com a linguagem, nem com a aparência física. A única Lei que imperava, de manhã à noite, era inventar e sorrir para eternizar os momentos de prazer.

Eram desconhecidos os significados das palavras: guerra, inflação, desenho animado, novela, e outros mais que hoje fazem parte do vocabulário da gurizada.

Só a Paz reinava na humildade da casita de chão batido.
E, diante das radículas secas de capim, imaginação e alegria explodiam em mim.

_ Óia, negrada! Vem cá!... [Óia aqui no assero! Tem é muito passarinzim!
E a garotada, em coro, respondia animada:
_Tráis, Nenca, tráis!...

Na verdade, esse idioma não era estrangeiro, nem código secreto. Só era plenamente entendido.

Era assim o dia todo. Assim era a vida inteira: Inocência, Pobreza e Felicidade morando na mesma casa; Liberdade brincando no terreiro.

Não havia muros, nem cercas, nem ruas, nem quintal. O terreiro emendava com a roça pequena e caseira onde os pés de mandioca cresciam viçosos para, de suas raízes, mamãe fazer “beijus de caco” e papai fazer farinha para vender na feira aos domingos. Farinha que a criançada, conformada, comia com feijão (feijão de corda). Farinha que a meninada, esfomeada, comia com sal (farinha seca) ou com café (café da manhã ou da tarde... qualquer hora no relógio da fome).

Somente raras vezes, dessa farinha, era feito um pirão gostoso da galinha que mamãe matava para a visita inesperada, ou para o filho que “fazia anos! (hoje aniversário”); ou ainda para aquele da família que estava doente...

O balanço de cipó, no galho da mangueira, ou do cajueiro, não causava brigas porque a união entre os irmãos de casa e os filhos dos vizinhos, e a obediência aos conselhos da mamãe (conselhos ou chineladas?) eram maiores que as arengas de menino.

No galho mais alto da mangueira o galo campina não podia esconder seu ninho porque os filhotes, tão logo fossem descobertos, iriam, coitados, morrer “empapados” com pirão de milho ou de farinha, na gaiola improvisada numa cabaça que a titia mandava do sertão.

A madrinha tinha a mesma autoridade da mãe. E na hora das conversas de gente grande, na beira do riacho, a meninada tinha de sair de perto e ficar calada como se nada escutasse. Não podia perguntar, nem se intrometer. _ Era feio e dava peia! _O “chiqueiro” das galinhas era bem varrido, porque ali era a casa da família de gente miúda, em que o “pai” ia para o trabalho, o “filho mais velho”, fazer compras na bodega do Geraldo (com dinheiro de folhas verdes); a “mãe” cuidava do “filho doente” e a “filha” era “aluna” da professora “Candinha” que morava na vizinhança e dava aulas em casa para os filhos das “comadres”.

E nesse faz de conta tudo era alegria com sabor de vida boa...

E a vida era apenas sonho. Sonho que de noite era ilusão e de dia era verdade. Sonho lindo que o tempo levou para não mais devolver, através dos anos que vieram a galope, trazendo, as rugas do rosto, o peso da realidade tão diferente da fantasia, e a triste certeza de que: Vida assim? NUNCA MAIS!...



Rosimar Brito